O requerimento
Caro Senhor Tempo,
Espero que esta o encontre passando bem, ou melhor, passando o mais devagar possível.
Por aqui vai-se indo, como o Senhor quer e consente, meio rápido demais para o meu gosto, e quando vi já era dezembro.
Foi-se mais um ano.
E com ele foram-se uma quantidade incalculável de amores, cores, idades, alguns amigos, não sei quantos neurônios, memórias, remorsos, desvarios, cabelos, ilusões, alegrias, tristezas, várias certezas (se não me engano, treze), algumas verdades indiscutíveis, umas calças que não fecham mais e aquele vestido de que eu gostava tanto.
Foi-se o meu gosto por vitrine.
Foi-se quase todo o meu vidro de perfume.
Foi-se meu costume de imaginar asneiras à noite.
Foi-se meu forte instinto de acreditar no que me dizem.
Foi-se meu açucareiro de porcelana.
Que pena. [...]
Foi-se a poupança.
O troquinho da gaveta.
Foi-se aquele antigo projeto. [...]
Será que o Senhor não se cansa, seu Tempo?
Não pensa em tirar umas férias, dar uma pausa, respirar um pouco? Não lhe agrada a ideia de mudar o andamento? Diminuir o ritmo? Em vez de tic-tac, inventar uma palavra mais comprida para compasso, mantra, ícone, diagrama?
Me diga sinceramente: para que tanta pressa?
Anda difícil acompanhar seus passos ultimamente. [...]
Mas já é dezembro.
Foi-se mais um ano.
E o Senhor passou voando, rebocou os meus momentos, foi desbotando minhas lembranças, carregou mais doze meses inteiros levando cada instante meu de carona.
Tentei voltar atrás em algumas decisões. Já era tarde.
Não deixei nada para amanhã. Mesmo assim não fiz sequer metade do que pretendia. Imaginei várias maneiras de estancar os dias, segunda, terça, quarta, quando via já era quinta. Sexta. Sábado. Domingo. Pronto. [...]
Calma, Tempo! Espere só um minutinho para eu explicar melhor meu ponto de vista.
Nem todo mundo é pedra, concorda? Dito isso, imagine então quantos pobres mortais sofrem da mesma agonia diária... [...]
Eu conheço de cor suas obrigações.
Estou convencida de suas utilidades.
Não fosse o Senhor, não existiriam saudade, retrato, suvenir, antiguidade, história, época, período, calendário, outrora, passatempo, novidade, creme anti-rugas, disputa por pênaltis, antepassado, descendente, dia, noite, nada, não existiria sabedoria, eu sei disso.
Não tome como queixas minhas palavras, por favor não tome.
Aqui vai apenas uma súplica.
Ah, se o Senhor fosse mais indulgente, mais piedoso, mais pensativo, se fosse baiano, menos estressado, mais manso, menos rigoroso, um bon-vivant, e se distraísse aí pelo caminho, e se deixasse apreciar as paisagens, e sofresse um devaneio, e ficasse de bobeira, esquecido das horas, divagando.
Escute aqui, seu Tempo, que tal deixar passar o resto e parar quieto um pouco?
(Adriana Falcão – Disponível em: http://alfabetizacaoecia.blogspot.com.br/2010/02/para-gostar-de-ler-cronica.html.)
Tempo rei
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
Fustigados pela chuva
E pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará
Nem pensamento
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei!
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó pai, o que eu, ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei!...
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos.
Mães zelosas, pais corujas,
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar
por um segundo
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei.
(GIL, Gilberto. In: Raça humana. LP EMI-ODEON BR 36.201, 1984. Lado A, faixa 4.)
Tanto no texto “O requerimento” quanto no texto “Tempo rei”, o apelo ao “tempo” aparece como fio condutor do desenvolvimento de ambos. Esse apelo se dá