O positivismo jurídico como abordagem avalorativa do direito
O positivismo jurídico como postura científica frente ao direito: juízo de validade e juízo de valor
O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão desses últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo do valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e eventualmente siga certas prescrições minhas. ( por exemplo, diante do céu rubro do pôr-do-sol, se eu digo: “ o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “ este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor.)
A ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários à exigência da objetividade. O fato novo que assinala a ruptura do mundo moderno diante das épocas precedentes é exatamente representado pelo comportamento diverso que o homem assumiu perante a natureza: o cientista moderno renuncia a se pôr diante da realidade com uma atitude moralista ou metafísica, abandona a concepção teleológica (finalista) da natureza (segundo a qual a natureza deve ser compreendida como pré-ordenada por Deus a um certo fim) e aceita a realidade assim como é, procurando compreendê-la com base numa concepção puramente experimental ( que nos seus primórdios é uma concepção mecanicista). A mesma atitude tornou-se própria também das ciências sociais ( isto é, das ciências que estudam o comportamento humano): assim, por exemplo, o lingüista estuda as línguas assim como estas existem efetivamente na sociedade, sem a elas aplicar qualquer juízo de valor, sem se perguntar, por exemplo, se são perfeitas ou não, se são conformes ou não um modelo ideal de língua e assim por diante. Mesmo o historiador se esforça em ser objetivo, em reconstruir os fatos, despojando-se de suas paixões e de suas preferências políticas e ideológicas, de modo a explicar os eventos e não julgá-los ( nesse sentido Croce dizia que “ a História não deve ser justiceira, mas justificadora”).
Pois bem, o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor : na definição do direito deve ser excluída toda a qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal; o romanista, por exemplo, considerará direito romano tudo o que a sociedade romana considerava como tal, sem fazer intervir um juízo de valor que distinga entre o direito “justo” ou “verdadeiro” e direito “injusto” ou “aparente”. Assim a escravidão será considerada um instituto jurídico como qualquer outro, mesmo que dela se possa dar uma valoração negativa.
Essa atitude contrapõe o positivismo jurídico ao jusnaturalismo, que sustenta que deve fazer parte do estudo do direito real também a sua valoração com base no direito ideal, pelo que na definição do direito se deve introduzir uma qualificação que discrimine o direito tal qual é segundo um critério estabelecido do ponto de vista do direito tal qual deve ser.
Para esclarecer estas duas atitudes diversas do juspositivismo e do jusnaturalismo é conveniente introduzir os dois conceitos de validade do direito e do valor do direito.
A validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, segundo a qual existe na esfera do direito ou, em outros termos, existe como norma jurídica. Dizer que uma norma jurídica é válida significa dizer que tal norma faz parte de um ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada sociedade.
O valor de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, pela qual esta é conforme o direito ideal (entendida como síntese de todos os valores fundamentais nos quais o direito deve se inspirar); dizer que uma norma jurídica é válida ou justa significa dizer que esta corresponde ao direito ideal.
O contrário de validade é invalidade e o contrário de valor (ou justiça) é desvalor (ou injustiça). Temos assim dois pares de termos (validade-invalidade; valor-desvalor) que não podem ser superpostos, porque representam dois pares de juízos sobre direito formulados com base em critérios recipocramente independentes.
Ora, a posição jusnaturalista sustenta que para uma norma ser válida deve ser valorosa (justa); nem todo o direito existente é, portanto, direito válido, porque nem todo é justo. Esta posição identifica o conceito de validade e de valor, reduzindo o primeiro ao segundo.
Há uma posição juspositivista extrema que inverte a posição jusnaturalista. Também esta identifica os dois conceitos, mas reduzindo o conceito de valor ao de validade: uma norma jurídica é justa pelo único fato de ser válida, isto é, de provir da autoridade legitimada pelo ordenamento jurídico para pôr normas. É difícil, porém, encontrar um positivista que conscientemente assuma esta posição extrema. Talvez esta posição se possa encontrar em Hobbes, segundo o qual no estado de natureza não existem critérios para distinguir o justo do injusto, visto que tais critérios somente surgem com a constituição do Estado, sendo representados pelo comando do soberano (é justo o que o soberano ordena e injusto o que o soberano veta).
Mas não é esta a posição típica do positivismo jurídico. Neste, ao contrário, é habitual distinguir e separar nitidamente o conceito de validade daquele de valor (pode, de fato, haver um direito válido que é injusto e um direito justo – por exemplo, o direito natural – que é inválido); ainda não excluindo a possibilidade de formular um juízo sobre o valor de direito, este sustenta que tal juízo se afasta do campo da ciência jurídica. Esta última deve se limitar a formular um juízo de validade do direito, isto é, assegurar a sua existência jurídica. A razão dessa posição é clara: a distinção entre o juízo de validade e o juízo de valor é tão somente um caso particular (referente ao direito) da distinção entre o juízo de fato e o juízo de valor. (A proposição: “ este direito é válido” tende, com efeito, somente a dar uma informação que pode servir aos cidadãos, aos juízes,etc; a proposição: “ este direito é justo ou injusto” tende, ao contrário, a influir sobre o comportamento dos cidadãos – fazendo com que obedeçam ou, respectivamente, desobedeçam ao direito.)”.
BOBBIO, N. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1990 p. 135-138)
Leia novamente:
“... (por exemplo, diante do céu rubro do pôr-do-sol, se eu digo:” o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “ este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor.)...” (linhas 10-12)
A respeito da distinção entre a postura dos dois observadores acima descritos, é INCORRETO afirmar que:
Leia novamente:
“... (por exemplo, diante do céu rubro do pôr-do-sol, se eu digo:” o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “ este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor.)...” (linhas 10-12)
A respeito da distinção entre a postura dos dois observadores acima descritos, é INCORRETO afirmar que: