A magia da imagem
Quando o homem do Paleolítico encontrou um pedaço de sílex, que parecia a cabeça de um bisão, pensou que aquele era um outro modo de o animal existir. E esse vínculo, para ele, entre a imagem e a realidade, parecia‐lhe tão forte que, se atingisse a imagem do animal, atingiria o próprio animal.
Esta será possivelmente a razão pela qual o corpo dos bisões pintados nas cavernas esteja cravejado de setas. É que isso asseguraria o êxito da caçada. Essa crença sobrevive até hoje no que se conhece como “magia simpática”, praticada por feiticeiros. No Brasil mesmo, é conhecida essa prática, que consiste em fazer o boneco da pessoa e espetá‐lo no coração, na certeza de que, desse modo, levará à morte a pessoa ali representada.
Esse vínculo entre a imagem e a realidade deu origem às artes visuais, que nasceram precisamente com o homem das cavernas e se mantêm até hoje como um dos principais meios de que dispomos para inventar o nosso mundo humano.
Como se viu, desde o primeiro momento, a imagem já não é mera representação do real, mas um meio de transformá‐lo: a arte existe porque a realidade não nos basta.
E, não por acaso, após milênios, a arte das imagens acompanha a aventura do homem, seja como expressão dos seus desejos e representação de seus valores, seja como a criação de momentos de beleza e deslumbramento. Das paredes de Lascaux a dos mosteiros medievais, das primeiras telas renascentistas às imagens fotográficas de hoje, das xilogravuras quinhentistas à litografia e aos processos eletrônicos de agora, o universo imagístico tornou‐se parte essencial da história humana, a ponto de ser impossível separarmos imagem e realidade.
Esse universo de significações, no entanto, não se contenta com a expressão visual das formas, das imagens. Ele necessita decifrá‐las, entendê‐las, traduzi‐las na linguagem das palavras. Mas, como disse Ernst Cassirer, as linguagens são intraduzíveis entre si, ou seja, o que a imagem diz a palavra não consegue dizer.
É que os significados só existem nas linguagens e são, portanto, criações dela. Certamente, podemos, com palavras, referirmo‐nos, por exemplo, a uma gravura de Oswaldo Goeldi, em que vemos, na noite escura, um homem com um guarda‐chuva vermelho. Podemos, mesmo, não apenas descrevê‐la – os elementos figurativos que a compõem – como tentar evocar a atmosfera de solidão ali presente. Não obstante, essa será sempre uma formulação verbal que jamais equivalerá, nem muito menos substituirá, a expressão que a imagem visual nos proporciona.
Isso não significa, porém, que a expressão vocabular seja um exercício descabido e inútil. Pelo contrário, por ser também uma linguagem autônoma, a palavra cria significações – leituras – que se somam à expressão visual das imagens. Nesse sentido, o texto crítico, analítico ou poético sobre uma obra de arte pode de certo modo incorporar‐se a ela, não como tradução da obra, mas como interpretação que a enriquece. Exemplo disso é o soneto de Rainer Maria Rike sobre o torso de Apolo, traduzido para o português por Manuel Bandeira e que termina com este verso: “Força é mudares de vida”.
E isso não apenas com respeito à arte. Na verdade, a realidade em que vivemos é, de fato, inventada por nós. Não simplesmente a realidade material – os instrumentos, as casas, os veículos etc. – como também a realidade espiritual, constituída pelos valores éticos, estéticos, religiosos, científicos.
Essa relação entre imagem e a palavra, no mundo da arte, ganha um significado muito peculiar, já que, neste campo, a interatividade das duas linguagens contribui para o enriquecimento de ambas, que assim descobrem novas possibilidades de reinventar‐se.
Acredito que estas considerações evidenciam a importância que a criação artística desempenha na permanente reinvenção de nossa realidade. Refiro‐me à realidade do homem como ser cultural. A permanência das obras de arte, criadas há século e mesmo há milênios, é a demonstração cabal do que a arte significa para o homem. É que se de fato, como creio, a vida é inventada, nada a torna mais fascinante do que a arte.
(GULLAR, Ferreira. A magia da imagem. Folha de São Paulo: out.de 2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ferreiragullar/2013/10/1358629‐a‐magia‐da‐imagem.shtml.)
Com base no trecho “Esta será possivelmente a razão pela qual o corpo dos bisões pintados nas cavernas esteja cravejado de setas. É que isso asseguraria o êxito da caçada. Essa crença sobrevive até hoje no que se conhece como ‘magia simpática’, praticada por feiticeiros. No Brasil mesmo, é conhecida essa prática, que consiste em fazer o boneco da pessoa e espetá‐lo no coração, na certeza de que, desse modo, levará à morte a pessoa ali representada.” (2º§), marque V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas.
( ) A palavra “cravejado”, por ser uma característica atribuída ao sujeito, exerce a função sintática de predicativo do sujeito.
( ) O segundo período do trecho é classificado como simples, já que nele há apenas um verbo.
( ) A palavra “se”, que aparece no terceiro período, foi colocada em situação de próclise, porque antes dela há um pronome.
( ) O verbo “levar”, que aparece no quarto período, exprime o sentido de “conduzir” e, por isso, funciona como transitivo indireto.
A sequência correta está em