Na fila
(Luís Fernando Veríssimo)
- Olha a fila! Olha a fila! Tem gente furando aí...
- Tanta pressa só pra ver um caixão...
- Um caixão, não: o caixão do Dom Pedro...
- Como é que eu sei que é o Dom Pedro mesmo que está lá dentro?
- A gente tem que acreditar, ora. Já se acredita em tanta coisa que o go...
- Com licença, é aqui a inauguração do Dom Pedro Segundo?
- Meu filho, duas coisas. Primeiro: não é o segundo, é primeiro. E segundo: a inauguração do viaduto foi ontem. Esta fila é para ver o caixão do Dom Pedro.
- Eles inauguraram o viaduto primeiro?
- Como, primeiro?
- Primeiro inauguraram o viaduto e depois chegou o Dom Pedro Segundo?
- Segundo, não, primeiro.
- Primeiro o quê?
- O Dom Pedro! Dom Pedro Primeiro!
- Primeiro chegou o Dom Pedro e depois inauguraram o viaduto?
- Olha a fila!
- Primeiro inauguraram o viaduto Dom Pedro Primeiro e, segundo, chegou o Dom Pedro Primeiro em pessoa. Quer dizer, o caixão. Está claro? E eu acho que o senhor está puxando conversa para pegar lugar na fila. Não pode não. Eu cheguei primeiro.
- Ouvi dizer que ele não serviu para nada.
- Como, para nada? E o grito? E a Independência?
- Não! O viaduto.
- Ah. Não sei. Mas é bonito. Como esse negócio todo, o caixão, os restos do Imperador, as bandeiras, Brasil e Portugal irmanados, essas
coisas simbólicas e tal. Eu acho isso bacana.
- Olha a fila! Vamos andar, gente. Pra frente, Brasil.
- Andam dizendo que os portugueses nos enganaram, que quem está no caixão não é o Dom Pedro Primeiro mas o Dom Pedro Quarto. Nos lograram em três.
- Mas é a mesma coisa! Dom Pedro era primeiro aqui e quarto em Portugal.
- Então eu não compreendo porque ele quis voltar para lá... Aqui tinha mais prestígio.
- Olha o furo!
- Me diga uma coisa. Quer dizer que o Dom Pedro Segundo era na verdade Dom Pedro Quinto?
- Em Portugal, seria. Não empurre. Segundo aqui e quinto em Portugal.
- Tem alguma coisa que ver com a diferença de horário, é?
- Não, minha senhora. Francamente. Se a senhora entende tão pouco de História, o que está fazendo nesta fila?
- Quero ver o caixão, ué! Essa badalação toda! E eu sempre gostei de velório. Só não me conformo de eles não abrirem o caixão pra gente ver a cara do moço.
- Não teria nada para ver. Só osso. Ele morreu há... Nem sei. Mais de cem anos.
- Faz mais de cem anos que o Dom Pedro Primeiro foi enforcado?
- O senhor está confundindo com o Tiradentes.
- Olha a fila!
- Afinal, o Mártir da Independência Luso-Brasileira, quem é?
- É Dom Pedro Segundo. Aliás, Primeiro. Que Primeiro, é Tiradentes! Agora, eu é que estou confuso. Essa fila não anda!
- Aquela festa que fizeram o outro dia, com o Triches, os Golden Boys e a Rosemary, para quem era?
- Para Tiradentes.
- Mas Tiradentes não era contra os portugueses?
- Era, mas faz muito tempo. Hoje Brasil e Portugal são uma coisa só. Eles podem até votar aqui.
- Para governador, presidente, essas coisas?
- Mais ou menos. É tudo simbólico, compreende?
- Como o viaduto?
- Isso. Olha a fila!
O melhor da crônica brasileira, 1 / Ferreira Gullar... [et al.]. – 5ª edição. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
Assinale a alternativa que apresenta o tipo de discurso presente no texto: