Questão
2015
FCC
Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo
Professor - Língua Portuguesa (SEDU ES)
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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As enchentes de minha infância

Rubem Braga

Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundos para o rio. Como a casa dos Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.

Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo.

Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso porão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo – aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá, para cima do Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava águas nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes.

(BRAGA, Rubem. As enchentes de minha infância. In: Ai de ti, Copacabana. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 157)

É correto afirmar sobre a crônica:
A
A organização compositiva da narrativa se dá no momento presente, mas “de repente”, algo surge, que faz com que o narrador se recorde de algo que ele viveu em seu passado. A partir do “estalo”, que é captado pelo narrador a partir de um detalhe, a narrativa toma outro rumo e incursiona em algum momento do passado.
B
Após cercar-se dos acontecimentos diários, o narrador dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo. A crônica toma uma forma realista que se plasma com essa matéria mesclada do cotidiano, aspirando à comunicação humana e fazendo da solidariedade social um valor básico.
C
Prepondera uma atmosfera restauradora de painéis temporais pretéritos, dispostos na recomposição de elementos relacionados à própria experiência de vida do autor. O narrador evoca fatos, pessoas, objetos e espaços e os resgata à momentaneidade do presente.
D
Depois de falar de negócios, família, política e da vida de todo o dia. O narrador volta ao tempo presente e exalta os cantos pitorescos de sua terra, fatos e valores substanciais que darão contornos, através do manejo da linguagem, a um quadro de imagens nostálgicas.
E
O narrador ridiculariza e ironiza o fato, tema da crônica, e, sendo, sorrateiramente, corrosivo e impiedoso, mas sob um tom que não perde o humor, fixa um olhar investigativo sobre a confluência de dois planos temporais primordiais que assinalam a recordação contemplativa.