A cor de Lampião
Lampião usava óculos escuros com aro de ouro para esconder um defeito no olho direito, machucado quando ele era ainda jovem por um galho de árvore – o que facilitou sua identificação quando foi morto em Angicos. Os que o viram em diversos momentos da vida o descrevem como um indivíduo magro, bem-proporcionado, de estatura mediana, pernas muito finas, que andava um pouco curvado devido ao seu equipamento (cujo peso era de cerca de quarenta quilos). Mancava um pouco por causa de um ferimento de bala em uma das pernas. Tinha rosto anguloso, com queixo pontiagudo, ótima dentadura, nariz afilado, cabelos muito lisos, fartos e pretos e a pele morenoescura. Suas mãos eram longas, magras e nodosas, com unhas escuras e grossas como garras, aspecto que devia ser notável, pois foi destacado por mais de uma testemunha. Como os banhos eram escassos, ele e seus cabras costumavam usar muito perfume para compensar o mau cheiro. Daí resultava que, por onde passavam, deixavam um odor característico, que ficou conhecido como marca registrada do cangaço. Segundo Otacílio Macedo, o jornalista que o entrevistou em 1926, em Juazeiro do Norte, para o jornal O Ceará (17/3/1926), Lampião era o mais escuro do bando, sua cor chegava “perto do negro”. Curiosamente ele tinha grande preconceito contra negros em geral, que considerava a “imagem do cão”. No começo de sua carreira em Pernambuco, quando ainda estava no bando de Sebastião Pereira, disse que não entrava na polícia porque não queria obedecer às ordens dos negros. Ao que Sebastião teria lhe perguntado: “Mas, compadre Virgulino, tu também não és preto?” Durante a visita a Juazeiro, cortou o cabelo e mandou fazer roupas novas para ele e seu bando. Assim, nas fotografias tiradas na ocasião, aparece de cabelos curtos, usando calças de grosso algodão azul e paletó escuro listrado. Não ostenta o chapéu típico dos cangaceiros, com enfeites na aba virada para cima, tendo preferido ser fotografado com um modelo de feltro simples. Como alçado, no entanto, leva as tradicionais alpercatas de couro dos vaqueiros. Ao redor do pescoço, usa um lenço preso por um anel de brilhante. Nos dedos, outros seis anéis de pedras preciosas – um rubi, um topázio, uma esmeralda e três diamantes. Em fotos posteriores, aparece de cabelos longos, com o chapéu tradicional enfeitado de várias moedas e medalhas, usando roupas comuns sobre as quais, no entanto, se sobrepõem os acessórios que lhe davam uma aparência impressionante. Deles, a cartucheira tirada a tiracolo era a que mais chamava atenção: tinha dois palmos de largura, duas fileiras de botões de ouro e prata e quatro de cartuchos com capacidade para carregar quatrocentas balas. Andava sempre armado com um rifle, uma pistola e um punhal de 55 centímetros no cinto. Nunca errava o tiro e sabia enfiar o punhal na carne atrás da clavícula, atingindo diretamente os órgãos vitais. Ganhou o apelido Lampião ainda no começo da carreira e sobre a origem do mesmo existem algumas versões. No entanto, todas elas são alusivas à sua rapidez de atirar. Em uma das histórias que então se contava, dizia-se que, durante um tiroteio, “sua espingarda não deixou de ter clarão, tal qual um lampião”. Lampião pagava bem aos que o serviam e era implacável contra os que se recusavam a ajudá-lo. Se pedia alguma coisa emprestada, podia-se ter certeza de que devolveria. Desejava ser conhecido como um homem de palavra. Não era um grande consumidor de bebidas alcoólicas, mas, quando bebia, dava preferências às mais requintadas, como o conhaque. Desconfiado, temendo tentativas de envenenamento, fazia sempre com que a comida que lhe era oferecida fosse antes provada por outros. Não falava aos membros do bando sobre o que conversava com os coiteiros e com os coronéis com quem mantinha ligações; e montou um sistema tão intrincado com o recebimento da munição que mesmo os seus cabras mais próximos não sabiam quem eram os fornecedores. Na entrevista concedida em Juazeiro em 1926, disse ter “bons amigos por toda parte”, que o mantinham avisado sobre a movimentação da polícia. Mas merece destaque o trecho em que declara manter “um excelente serviço de espionagem, dispendioso embora, mas utilíssimo”. Quem entrava no bando recebia logo um apelido dado por Lampião, que preferia nomes tirados de lugares, pássaros, animais e forças da natureza, como: Quixadá, Sabiá, Jararaca, Corisco. Era fácil fazer amizade com ele, pois, fora das situações em que adotava uma atitude de grande pompa e seriedade, como nas entrevistas, gostava de festas, de dançar ao som de sanfona e de distribuir cachaça em abundância. Entre uma ação e outra, o bando descansava, caçava e jogava cartas. Seu modo de comandar fazia do cangaço um ambiente amigável e tornava o bando um grupo leal e coeso. No acampamento, alimentados à base da modesta dieta de carne-seca ou cabrito assado, farinha e rapadura, a bebida era farta e o clima animado. Sempre que possível havia música e, na falta de mulheres, que só passaram a integrar o bando depois de 1930, os homens dançavam uns com os outros. Os assaltos e visitas às cidades, quando bem-sucedidos, eram seguidos de grandes farras em que os membros do grupo que tinham algum talento cantavam e tocavam, fazendo os típicos desafios da tradição cultural sertaneja. Lampião também fazia seus versos e consta que seriam de sua autoria muitos que circularam no sertão, relativos às suas aventuras. Seria ele o autor da popularíssima canção “Mulher rendeira”, verdadeiro hino de guerra do bando, que costumava cantá-lo quando invadia as cidades. Embora Lampião tivesse pouca cultura e usasse um linguajar rude, falava bem, sem se perturbar, ouvia atentamente e era cortês. Tinha plena consciência da própria importância e ficava francamente lisonjeado com a admiração que despertava no povo. Gostava de ler ou de ouvir alguém ler jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, principalmente para saber da repercussão de suas façanhas. Inteligente, articulado, organizado, astuto, hábil nos trabalhos manuais, tendendo para a discrição e os hábitos elegantes, em outras circunstâncias talvez Lampião tivesse usado suas grandes capacidades para fazer algo de útil à sociedade. Mas no mundo do sertão as opções para um jovem de família modesta como a dele não eram muito variadas, e as possibilidades de ascensão social remotíssimas. Então, de alguma forma, pode-se dizer que ele foi um produto de seu meio.
LUSTOSA, Isabel. De olho em Lampião: violência e esperteza /coordenação Lilia Moritz Schwarz e Lúcia Garcia. – São Paulo: Claro Enigma, 2011.
De acordo com o texto, Lampião era: