O consumo como forma de expressão e de pertencimento
1 Você é o que você consome, queira ou não, sendo consumista ou não. Dentro da lógica capitalista, a exemplo da frase dita pelo poeta Paulo Leminski “Repara bem o que eu não digo”, você é até aquilo que deixa de consumir. Quem faz essa afirmação é o antropólogo Everardo Rocha, que, há cerca de 40 anos, estuda a Antropologia do Consumo e da Mídia. Em seu livro “O Paraíso do Consumo: Émile Zola, a magia e os grandes magazines”, Rocha avalia os impactos socioculturais do principal personagem do livro, que é o “grande magazine” - tradução de “grand magasin”, como são chamadas as lojas de departamentos na França. Ele faz uma análise da expansão das lojas de departamentos no século XIX e explica como ocorreu a consolidação do consumo na modernidade. “Os grandes magazines foram, de fato, a virada fundamental que reuniu diversas potencialidades para fazer do consumo um fenômeno central da nossa cultura”, afirma o antropólogo.
2 De acordo com Rocha, passados mais de um século e meio desde a inauguração do primeiro grande magazine em Paris, diversas características desse modelo de negócios continuam atuantes na cultura de consumo que vivemos hoje. Por exemplo, as lojas de departamentos do século XIX impulsionaram inovações no comércio da época que permanecem no nosso cotidiano presente, tais como: a exposição dos produtos em vitrines, a fixação e a exibição de preços em etiquetas, a criação de datas comemorativas e promocionais, a incorporação de feriados religiosos e cívicos ao calendário de compras e a transformação das visitas às lojas em momentos de entretenimento. “Esses empreendimentos contribuíram para dar forma ao sistema de consumo moderno. Criaram espaços de sociabilidade e ciclos que ritualizam as práticas dos consumidores, fomentando datas especiais como o ‘dia das mães’, ‘dia dos namorados’, as liquidações, a Black Friday, e assim por diante”, explica o antropólogo. O pesquisador lembra ainda que “as atividades de consumo, até mesmo as compras corriqueiras, são revestidas de carga simbólica. Expressam afeto, materializam status e hierarquias sociais, estabelecem relacionamentos e a obrigação de reciprocidade”.
3 Para o antropólogo, na vida moderna, as pessoas são identificadas e se reúnem, em larga medida, de acordo com suas práticas de consumo. “Fazemos parte de grupos urbanos que se formam de acordo com gostos, estilos e poder aquisitivo; os bens de consumo podem ser uma ponte ou um muro entre as pessoas. Nossas escolhas e possibilidades de consumo, por exemplo, as marcas de roupas que costumamos usar, o tipo de carro que dirigimos, dentre outras, tanto refletem quanto viabilizam nossas relações sociais”, diz o antropólogo. “Pessoas podem ser classificadas pelas roupas que estão vestindo ou pela decoração de suas casas, pelos serviços que contratam, pelas comidas de que gostam, pelas viagens que fazem durante as férias”.
4 O porquê disso pode ser resumido a uma só questão: a vontade de pertencer a um nicho social diferente. Não basta ser, é preciso ter, e, se possível, mostrar que tem.
5 Se consumir é importante para ser e se estabelecer na sociedade moderna, dispositivos que tornam isso particularmente evidente são as mídias sociais, que servem como vitrines das vivências e experimentações de cada um. “Nas redes sociais, o ritual é esse: usuários editam a sua própria imagem, de forma mais ou menos consciente, para construir e manter relações naquele ambiente virtual. Em conjunto, as fotos e os status compartilhados devem significar aquilo que, em sociedade, geralmente se considera adequado e interessante. Inclusive, é comum ouvir alguém da ‘vida real’ se queixar do excesso de felicidade que todos parecem exibir ali. Essa aparente perfeição é elaborada através de recorrentes posts de pés descalços na praia, reuniões com família e amigos, festas, infinitas viagens, shows de música, check-in em restaurantes, cinemas, pontos turísticos, aeroportos, e assim por diante. Retratos e selfies existem para o outro e, em certo sentido, todas essas publicações são um prolongamento da ‘vitrinização’ da vida social levada a efeito pelos grandes magazines do século XIX”.
6 Analisando o fenômeno do consumo desde a época da inauguração dos primeiros grandes magazines, no século XIX, Rocha afirma que, apesar do avanço tecnológico e da aceleração da globalização, muitos dos rituais e dos valores de hoje já eram partilhados, de certa maneira, naquela época e até antes dela. “As técnicas e os veículos de comunicação mudaram, mas não certos hábitos, formas de expressão e de relacionamento. Por exemplo, um artigo de um pesquisador de história da arte mostra como, desde o início da modernidade, a pintura de retratos e autorretratos se torna uma prática difundida não só entre monarcas e membros da nobreza, mas também entre os burgueses em ascensão, que, através dessa forma de divulgar a si mesmos, queriam demonstrar poder, prestígio e conexões sociais. Em um tempo menos distante, na minha juventude, não havia ainda a internet, mas podíamos fazer amigos por correspondência, em trocas de cartas, como hoje funcionam as mensagens em redes sociais on-line”.
7 Quando perguntado sobre o futuro do nosso consumo, Rocha diz que, como antropólogo, seria inconsequente tentar predizer o que veremos ao longo dos próximos anos: “Apesar da celeridade tecnológica, os processos de mudança cultural são bem mais lentos do que se imagina. Em vários aspectos da cultura, podemos ver mudanças rápidas quando olhamos, por exemplo, as tecnologias ou os conteúdos de um filme ou de uma novela. Porém, se olharmos pelo plano da estrutura narrativa dessa novela ou filme, podemos ver a permanência de valores que já estavam em filmes e novelas bem mais antigos. Os conteúdos podem mudar em ritmo muito mais rápido do que os modelos que os sustentam”.
KIFFER, Danielle. O consumo como forma de expressão e de pertencimento. Rio Pesquisa, ano 9, nº 39, junho de 2017. Disponível em: https://siteantigo.faperj.br/downloads/revista/Rio_Pesquisa_39/Comportamento.pdf. Acesso em: 30 jul. 2024. Adaptado.
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