A boca, no papel
O garoto da vizinha me pediu que o ajudasse a fazer (a fazer, não, a completar) um trabalho escolar sobre a boca. Estava preocupado porque só conseguira escrever isto: “Pra que serve a boca? A boca serve pra falar, gritar e contar. Serve também pra comer, beber, beijar e morder. Eu acho que a boca é um barato”. Queria que eu acrescentasse alguma coisa.
– Que coisa?
– Qualquer coisa, ué. Escrevi só quatro linhas, a professora vai bronquear.
– Mas em quatro linhas você disse o essencial. Para mim, só faltou dizer que a boca serve também para calar. Em boca fechada não entra mosquito.
– Isso não dá nem uma linha – e os olhos do garoto ficaram tristes.
– Por favor, me ajude...
Então resolvi fazer a minha redação, como aluno ausente do Colégio Esperança, e passá-la ao coleguinha, a título de assessor de emergência.
***
A boca de que estou falando, aliás, escrevendo, pode ser alegre, amarga, ameaçadora, sensual, deprimida, fria, sei lá o quê. Uma boca pode variar muito de expressão e mesmo não ter nenhuma. Uma das bocas mais gozadas que eu já vi foi a boca- -de-chupar-ovo, uma boquinha de nada, da minha tia Zuleica. Se fosse um pouquinho mais apertada, eu queria ver ela se alimentando – por onde? Mas esta boca está fora da moda, só aparece no jornal nos retratos das melindrosas de 1928, que faziam a boca ainda menor desenhando o contorno com o batom. Os lábios ficavam de fora, de longe.
Estou lendo escondido as poesias de Gregório de Matos. Dizem que ele tinha o apelido de Boca do Inferno por causa dos negócios que escrevia e que eram infernais. Infernais no tempo dele, pois na rua e em toda parte já escutei coisas muito mais cabeludas, xii!...
Toquinho canta uma letra que fala em boca da noite, acho que ele queria falar no anoitecer. É bonito, mas não consigo imaginar essa boca na cara da noite. Sou mais a boca do dia, que não sei se alguém já teve ideia de falar nela, mas o amanhecer engolindo a escuridão da noite é mais legal que o anoitecer papando os restos de dia.
Boca por boca, não ando atrás da boca-livre, que aliás nunca passou perto de mim, e só um grupo consegue, os privilegiados. Se a boca fosse livre para todos, então a vida seria melhor.
É a tal história: quanta gente fazendo boquinha pra conseguir o quê? Nada. E com quatro ou cinco bocas em casa pra sustentar.
(DE ANDRADE, Carlos Drummond. Moça deitada na grama. Rio de Janeiro: Record, 1987. Adaptado.)
Assinale a opção em que a partícula “o” sublinhada aparece com o emprego diverso do que se apresenta no seguinte trecho do texto: “[...] é mais legal que o anoitecer papando os restos de dia.” (10º§)