Texto 14A3-III
Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar “o perigo de uma única história”. Eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Eu fui também uma escritora precoce. E, quando comecei a escrever, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis em face de uma história, principalmente quando somos crianças. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são. Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria para cursar universidade nos Estados Unidos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha “música tribal” e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita da Mariah Carey! Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Então, após ter passado vários anos nos Estados Unidos como uma africana, eu comecei a entender a reação de minha colega para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria, e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando em guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por eles mesmos e esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil. É assim, pois, que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano, e não com a criação colonial do estado africano, e você tem uma história totalmente diferente. Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.
Chimamanda Ngozi Adichie. O perigo de uma história única. Julia Romeu (Trad.). 1.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 (com adaptações).
No trecho “Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos”, do texto 14A3-III, o termo “Bem”