TEXTO II
A velha Totonha de quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meninada. Ela vivia de contar histórias de Trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leve que uma ventania poderia carrega-la, andava léguas a pé. de engenho, como uma edição viva das Mil e Uma Noites. Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às palavras.
As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabia escolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primo Silvino, porque ele se punha a tagarelar no meio das narrativas. Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para este seu ouvinte a velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia, contava mais uma. entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato, sempre com aquele seu sorriso de avó de gravura dos livros de história. E suas lendas eram suas, ninguém sabia contar como ela. Havia uma nota pessoal nas modulações de sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos. O seu Pequeno Polegar era diferente. A sua avó que engordava os meninos para comer era mais cruel que a das histórias que outros contavam
A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. Ela subia e descia ao sublime sem forçar as situações, como a coisa mais natural do mundo. Tinha uma memória de prodígio. Recitava contos inteiros em versos, intercalando de vez em quando pedaços de prosa, como notas explicativas [...]
Havia sempre rei e rainha, nos seus contos, e forca e adivinhações. E muito da vida, com as suas maldades e as suas grandezas, a gente encontrava naqueles heróis e naqueles intrigantes, que eram sempre castigados com mortes horríveis. O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os rios e florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com a Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba-Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.
[...]
Depois Sinhá Totonha saia para outros engenhos, e eu ficava esperando pelo dia em que ela voltasse, com as suas histórias sempre novas para mim. Porque ela possuía um pedaço do gênio que não envelhece.
José Lins do Rego. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio. p. 49-54
O narrador caracteriza a personagem como “velha Totonha”. Se fizer a troca do adjetivo para depois do substantivo, o sentido permanece o mesmo independente da posição colocada