A Roupa
Maria Lysia Corrêa de Araújo
Era um homem comum, que vivia num lugar comum. Tudo que fazia era comum. Todos os dias, quando saía do trabalho, entrava no bar, tomava uma bebida, olhava a vitrina onde se encontrava uma lagosta enorme, vermelha, com antenas cilíndricas e longas — isso vira no dicionário — e ia embora para casa.
Os dias se repetiam na ordem comum. Saía do trabalho, entrava no bar, tomava uma bebida, olhava a vitrina que nunca deixava de ter a lagosta e ia embora para casa. Este pedaço era o pior, porque lá as coisas comuns eram mais comuns, embora soubesse ser normal esse comum, mas começava de longe a inquietar-se.
Era melhor no trabalho, quando saía, e no bar tomava sua bebida e olhava o crustáceo. “Crustáceo macruro, de antenas cilíndricas e longas e cuja carne é saborosa. Palinurus argus”. Essa definição, que achara bela, vira no dicionário. Então, agora quando saía do bar, gostava de dizer:
— Alô, crustáceo.
— Alô, respondia a lagosta e, com uma das antenas cilíndricas e longas, fazia -lhe um aceno amigo.
O homem ia embora para o seu comum, mas pensando muito que agora tinha um novo interesse. A lagosta lhe fora receptiva e isso era bom, muito bom.
Os dias iam-se repetindo no seu comum, o comum do trabalho, o mais comum da casa, o comum de tudo.
Quando saía do trabalho, no bar tomava a dose de bebida e, na saída, dizia para a lagosta:
— Alô, Palinurus argus. Qualquer dia vou comê-la. É uma forma de sair do meu comum. Não é sempre que se pode comer lagosta...
— Está certo, respondeu ela. Venha.
O homem ria de si mesmo, porque sabia não poder sair do comum da casa, chegar àquela hora certa, aceitar a comida, a mulher, os filhos, o comum. Sabia-se comum, que vivia num lugar comum, tudo que fazia era comum, o trabalho, o bar, a casa.
Ontem saíra disposto a romper barreiras, a cortar amarras, sentia-se possuído por uma força diferente. Não voltaria para casa, ficaria no bar e pediria a lagosta e a comeria sozinho.
— Alô, crustáceo.
— Alô.
— Vou comê-la hoje.
— Venha, respondeu a lagosta.
Ficou meio desarmado com tanta passividade. Já a estimava um pouco e não queria destruí-la. Deixaria para outra vez. Voltou para casa, mas o desejo da lagosta começava a obscurecer a sua relação comum com as coisas comuns da casa, do trabalho, de tudo.
No dia seguinte o homem saiu de casa, foi para o trabalho, no bar pediu a bebida. Disposto se tinha levantado e disposto estava a essa hora. Em casa que tudo se danasse. Comeria a lagosta.
Sentou-se no canto do bar e se sentiu feliz, sozinho. Comeria a lagosta inteira. Ela chegou, linda. Vermelha. As antenas faziam movimentos leves — antenas cilíndricas e longas — estava na sua frente o crustáceo macruro — Palinurus argus — exatamente como no dicionário.
— Alô, filha. Eu disse que um dia haveria de comê-la e aqui estou.
— Aqui estou, repetiu a lagosta.
O homem pegou o garfo, a faca, usou as mãos, pegou de novo o garfo, a faca, colher, as mãos, tentava tirar pedaços da lagosta, não conseguia; as antenas não o deixavam movimentar - se. Sentia picadas nos braços, no rosto, no pescoço. As antenas iam crescendo, crescendo, e cada vez mais o apertavam. De repente sentiu um pedaço de ombro cair sobre a mesa, o sangue espirrou sobre a lagosta, que ia engolindo os braços, enquanto as antenas não lhe permitiam reação alguma. Não podia ser assim dominado por um simples crustáceo. Lutaria até o fim. Mas não adiantava. O outro ombro já fora também destruído, o sangue se misturava à toalha, caía no chão fazendo uma enorme poça, não enxergava bem a lagosta. Sentiu picadas terríveis nos olhos e, como os ombros e braços, estavam sendo deglutidos pela lagosta.
— Meu Deus, meu Deus, gritou o homem, que ainda tinha um pequeno pedaço de boca.
— Meu Deus, meu Deus, imitou-o a lagosta comendo agora os órgãos. Comia com uma rapidez incrível. Só faltava o coração e o fígado. As antenas arrancaram os dois e ela os engoliu instantaneamente.
Então o garçom chegou, levou a lagosta para a vitrina, limpou a mesa, o chão, apanhou a roupa do homem, levou-a para casa para a mulher lavar e aproveitar.
ARAÚJO, Maria Lysia Corrêa de. A roupa. In: JOSÉ, Elias (Org.). Setecontos setecantos. São Paulo: FTD, 1991. v. 5, p. 48-51.
A partir do sentido global do texto, afirma-se:
I. O tédio massacrante advindo da monotonia do cotidiano pode levar o homem a agir contra os seus princípios.
II. A solidão e o cotidiano do ser humano moderno conduzem -no a ser destruído pelo desejo de consumir aquilo que não lhe pertence.
III. A rotina trabalhista massacrante da sociedade capitalista gera um cidadão insensível aos problemas alheios.
Das assertivas, estão corretas