Mil e uma noites
Era uma vez um sultão que descobriu que sua mulher o traía. Cortou-lhe a cabeça. Triste e infeliz, dedicou o resto da vida à vingança. Todas as noites dormia com uma mulher diferente, que mandava matar no dia seguinte. Sherazade, jovem princesa, oferece-se para dormir com o cruel sultão. Caprichosa, garante que tem um plano infalível que a livrará da morte. Assim aconteceu. Passa mil e uma noites com o rei, contando histórias de traições. O sultão enganado mudou seu destino. Esquece a vingança, ouvindo muitos outros casos iguais ao seu.
O que aconteceu com o sultão? Conformou-se, pois a traição faz parte da vida? Sossegou ao saber que muitos outros também eram enganados? Perdeu a inveja dos homens felizes? Ou simplesmente ficou entretido com as histórias de Sherazade?
Não se sabe como termina a história. O rei voltou a acreditar nas mulheres ou mandou matar Sherazade ao fim das mil e uma noites? Histórias emendadas umas às outras distraem, divertem e não fazem pensar. Anestesiam. As histórias têm certa magia.
Tenho pensado sobre os inúmeros casos de corrupção contados por jornais e revistas. Emendados uns aos outros, parecem histórias das mil e uma noites brasileiras.
A denúncia da imprensa é o instrumento mais importante de que dispõe a democracia para combater a corrupção e saber o que acontece por trás dos bastidores. O caso Watergate foi o resultado de exaustivas investigações dos jornalistas do Washington Post. Coletaram dados, levaram até o fim as suas suspeitas e correram o risco das suas acusações. Não foram notícias baseadas em diz-que-diz ou espalhadas nas páginas dos jornais por adversários políticos. Notícias divulgadas sem investigação jornalística mais profunda acabam sendo banalizadas.
A sociedade precisa ter acesso a fatos que a convençam. A esperada e saudável indignação não vai surgir com denúncias feitas sem provas. Histórias de corrupção em cores, fotos cruéis, denúncias vazias levam a quê? Será que com comédia e piadas é que se pretende apresentar fatos de tal relevância? Não há lugar para tanto sense of humor em um país onde a miséria seja tão grande como a nossa. Infelizmente, a hora não é para brincadeiras. Do contrário, as pessoas esperarão os jornais e revistas apenas ansiosas pelo próximo capítulo da novela das mil e uma corrupções brasileiras.
O que vai acontecer com os brasileiros? Vão se conformar com a corrupção pois faz parte da vida? Sossegar ao saber que existem casos iguais em outros países? Perder a admiração pelos homens honestos? Ou ficar simplesmente entretidos com histórias de Sherazade?
A corrupção não pode se tornar mais uma distração para os brasileiros.
Corrupção faz parte da natureza humana. Para que seja controlada, a imprensa deve apresentar a denúncia com o máximo possível de provas. Só assim a sociedade pode reagir e a Justiça atuar. Os casos são contados muitas vezes apenas com insinuações e sem fatos. Muitos são esquecidos e substituídos por outros mais novos. Confundem as pessoas e levantam dúvidas sobre a veracidade da notícia. Não há tempo para se perder em histórias de mil e uma noites. Estamos escrevendo a história de um país com 130 milhões de habitantes. Gente muito sofrida. Pessoas não podem virar ficção. É preciso cuidado.
Cosette Alves, Folha de S. Paulo, 12 jul. 1991
No trecho “Será que com comédia e piadas é que se pretende apresentar fatos de tal relevância?” aparece uma transgressão à norma-padrão da língua portuguesa. Assinale a alternativa em que se percebe uma transgressão referente ao mesmo tópico gramatical.