Memórias da Casa Velha
Vou subindo a ladeira calçada de pedras velhas irregulares e escorregadias, ladeada de casas velhas, de paredes desbotadas. Tudo é silêncio e, não fosse aquela mulher, também velha e desbotada, que me espia triste do alto de uma janela, diria que ninguém mora mais aqui, que todos se foram, que muitos morreram e que outros se mudaram.
Quando chego à última curva, a respiração se faz difícil pelo esforço da subida, mas sinto-me recompensado ao avistar o grande portão aberto em arco. Reconheço-o facilmente, embora suas grades estejam enferrujadas e não brancas, como antigamente.
Até há pouco chovia. Agora um sol alegre ilumina a copa das árvores, vence a folhagem e espeta seus raios na relva. Mesmo assim, quando entro, sinto a terra úmida debaixo dos meus sapatos.
Há quantos anos entrei por esta mesma alameda? Vinte, vinte e cinco? Talvez. Lembro-me que ficara impressionado com a majestade do jardim. Seria ele mais belo então? Mais tratado era, por certo. Agora, abandonado, tudo aquilo que perdeu em simetria, em colorido, ganhou em placidez, em santidade. Sim, penso que estou a entrar numa catedral vazia, enquanto caminho devagar, olhando em torno.
Antes havia marrecos neste laguinho: agora, folhas mortas boiam, sem pressa de chegar à outra margem. Aliás, não eram somente marrecos. Lembro-me de dois cisnes a me olharem espantados, sem compreenderem que aquele menino também os via pela primeira vez.
Um dia um cisne morrerá, por certo‖ quando li o soneto de Salusse, numa antologia de parnasianos, lembrei-me imediatamente do casal de cisnes que vivia neste lago.
Se o cisne vivo nunca mais nadou, não sei. Sei que os bichos se foram todos. Apenas os pássaros continuam a usufruir deste jardim. Ouço o chilrear de centenas deles sobre a minha cabeça e, sem me importar com isso, vou subindo na direção da casa.
Foi o vento na minha nuca ou foi de pura saudade que me veio este tremor? Lá está a varanda grande, cingida de trepadeiras. Minha mãe me segurava pela mão e falava, mas o alvoroço das moças era mais alto que a sua voz. Uma delas (quem seria?) apaixonou-se por meus cabelos louros e, naquela tarde em que aqui estive, penteou-me tantas vezes!
Quando minha mãe abaixou-se para me beijar e partir, quase chorei na frente das moças. Depois esqueci. Elas brincaram comigo, me deram lanche, me deixaram correr no gramado.
Olho a casa e penso que a gente que mora lá embaixo, na ladeira, deve andar a inventar coisas, a dizer que ela é mal-assombrada. Triste, coitada. Triste é o que ela é.
Sei que ninguém mais vem cá e esta roseira deve saber também, mas, sem qualquer vaidade, continua a expor as suas rosas. Quanto àquele canteiro, que as rolinhas estão ciscando, era de crisântemos, mas não se usa mais essa flor.
O casarão está em ruínas. Nada mais dá ideia de abandono do que esta janela de vidros quebrados ou aquela fonte sem repuxo. Já não há os crisântemos de outrora, a fonte, as moças na varanda, seu riso.
Tudo é silêncio, tudo é quietude. Somente os pássaros. Os pássaros e as lembranças.
Pela tarde, à hora do crepúsculo (hoje todos os crepúsculos terminam aqui) minha mãe veio me buscar. Quase a vejo caminhando, a sorrir para mim. Tão moça e tão linda (conta-se que, no seu tempo, foi a mais bonita aluna do Colégio Sion), ela me acenava com um embrulho na mão; o presente que prometera, caso me comportasse bem.
A alegria que senti ao revê-la! Lembro-me que corri em sua direção e tão afoito, que caí de peito na relva, como um mergulho. O pão com geleia que uma das moças me dera caiu também e lá ficou esquecido.
Não chorei. Contive as lágrimas como contenho agora, enquanto vou descendo pelo mesmo caminho. Vou devagar, porém. Já não há nem a pressa, nem a alegria de então.
Sérgio Porto, in Antologia Escolar de Crônicas
Pela história contada no texto, percebe-se que o narrador demonstra um sentimento de: