Questão
2008
UEG
Prefeitura Municipal de Anápolis (GO)
Fiscal Sanitário (Pref Anápolis/GO)
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MEDITAÇÃO SOBRE O CALOR DAS PALAVRAS

José Castello

Costumo ter pesadelos com elevadores sem freios, anjos privados de asas e jatos comerciais desgovernados, sofro de alergia a doninhas, salgadinhos, cuecas de seda, mertiolate e nem sempre aceito minha imagem quando me olho no espelho. Sou hipocondríaco, é verdade, então metade desses males deve ser imputada à força de minha imaginação. Metade não. A outra parte, a mais importante, talvez mereça uma explicação bem simples. Sou, como qualquer homem, uma vítima das palavras, de seu fulgor, do seu poder de desgaste, do modo como elas podem nos submeter e governar.
    
Ocorre-me, a meu favor, que é ridículo pensar que sou hipocondríaco se me compararem, por exemplo, ao repórter Bartolomeu Sáurio, que trabalhou comigo no Mundo Ilustrado. Era um sujeito manso, que jogava basquete, não comia carne vermelha e, mesmo quando o provocavam, e apesar dos olhos redondos conservava uma placidez tibetana. Era sempre escalado para casos impossíveis e se saía bastante bem. Um dia ganhou um presente, um dicionário de língua portuguesa. Maldita hora, Bartolomeu entregou-se ao jogo, muito estimulante para quem mexe com palavras, de abrir o livro ao acaso e, fazendo-se de oráculo, encontrar revelações. Um acaso malicioso o levou à palavra sáurio, seu sobrenome, e Bartolomeu Sáurio fez uma expressão murcha, de esgotamento quando descobriu o significado nela contido.
    
Os sáurios, ele passou a saber, são répteis cordados, escamados, com um osso quadrado, vértebras móveis, língua partida, órgão copulador duplo, que se arrastam pelas pedras e se dissimulam nas frestas dos desfiladeiros. São, numa expressão mais simples, os lagartos. Depois dessa revelação, Bartolomeu Lagarto (assim passou a ser chamado) nunca mais foi o mesmo. Sua pele adquiriu, aos poucos, um tom esverdeado; algumas vezes, enquanto escrevia suas reportagens, era visto com a boca aberta, a língua imensa circulando pelos lábios, como um chicote.
    
Foi vítima, mais que da hipocondria, das palavras, açoitado por um nome que já carregava, mas que, até aquele dia, era apenas um invólucro vazio; preenchido, o sobrenome passou a moldar a vida de Bartolomeu Sáurio, que começou a sofrer dele, como sofremos de uma alergia, ou um vício. Algumas dúvidas ainda o consolaram quando, num restaurante, conheceu uma certa Magali Gamarra, que apesar do sobrenome, que aliás divide com um zagueiro célebre, jamais se deixou afetar por seu significado. Gamarra é a correia que se amarra à cabeça do cavalo para que ele não a levante em demasia. Magali, apesar disso, sempre andou de cabeça erguida e, ainda mais, recusa-se a usar gargantilhas, colares de pérolas e lenço de pescoço.
    
Desmente assim seu sobrenome, até o ironiza. Bartolomeu pensou que poderia fazer o mesmo, mas percebeu manchas difusas surgirem em sua pele, as unhas crescerem, a cabeça ficando mais quadrada. Nunca mais o vi, mas me disseram que mudou-se para os Andes e se tornou alpinista, o que não deixa de ser uma outra forma de se sujeitar ao nome que carrega.
    
Bartolomeu Sáurio é uma prova viva do que as palavras podem fazer com um sujeito. Um amigo, que se analisa com um lacaniano, me disse que tenho pesadelos com elevadores porque o elevador “eleva a dor”. Não, não me refiro a esses jogos de palavras tão franceses. Falo de algo que se passa mais por baixo, que é mais simples e mais devastador. O problema é que as palavras fixam os significados – basta ver o que fazem com elas os dicionários. E ali, congelam, perdem seu calor, transformando-se em etiquetas, dessas que grudam para sempre. Ao passar a saber o que é um sáurio, Bartolomeu arrastou para dentro de si uma série de significados fixos, que colaram em seu espírito; e, porque é impressionável (mas quem não é?), tratou de encontrar dentro de si provas da existência de tais atributos – e, no abismo das palavras, todas as idéias se relacionam, qualquer coisa pode estar em qualquer lugar, então tudo é possível. Pobre Bartolomeu, que deixou escapar o calor das palavras, perdeu-o, e fez delas cubos de gelo. Que esqueceu que palavras podem ser mastigadas, retorcidas, desdobradas, e deixou, ao contrário, que elas o asfixiassem, pois, em vez de saboreá-las, ele as engoliu.

FARACO, Carlos Alberto e TEZZA, Cristóvão. Prática de textos para estudantes universitários. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 37.

No que se refere ao gênero textual, o texto acima é
A
um editorial.
B
uma crônica.
C
uma paráfrase.
D
um conto.