Livre
Decidi renunciar à civilização e seus descontentamentos. Deixo minhas posses para a financeira, minha conta bancária para o imposto de renda, meu exemplo de vida e meu exemplo para a família e minhas dívidas para a posteridade. Rasgarei, em ato público, minha carteira de identidade, minha carteira profissional, meu passaporte, meu atestado de vacinação, licença de motorista, meu título de eleitor, meu certificado de reservista e meu cartão do Touring. Peço que minha carteira do INPS e meu cartão do CIC sejam queimados e as cinzas espalhadas ao vento. Que meu nome seja sumariamente riscado de todos os cadastros. Depois de dois milhões de anos, volto para o jângal, de onde nunca deveria ter saído.
Empenhe-se meu relógio e leiloe-se minha coleção da “Playboy”. Há um resto de Ballantine na cozinha, que deve ser dividido entre meus amigos depois que eu me for. Meus vinhos para o povo. Do guarda-roupa levo apenas o suficiente para chegar, com um mínimo de recato, até Manaus. Depois a nudez e a selva. Queimem-se minhas três gravatas.
Meus livros? Queimem-se todos. Não. Vou precisar de alguma coisa para ler no avião. Deixa um policial qualquer, não quero nem saber o título. Não esse não. Levo todos os meus livros, isso. Vou desaprender a ler assim que me instalar na minha clareira na Amazônia. Começarei com a “Crítica da Razão Pura” e irei desaprendendo, desaprendendo até a cartilha. Só serei livre quando Eva, a uva e vovó não significarem nada além de riscos pretos numa página branca, e aí queimarei a página. Com quê? É bom levar fósforos. Não sei se vou conseguir fazer fogo por fricção. Aliás, tem um livro ai que me ensina a sobreviver na selva. Esse é melhor guardar.
Vão pedir meus documentos para poder embarcar no avião. E se eu dissesse, simplesmente, “sou um ser humano sem nome e sem número, meu único documento é essa cara honesta?” Me prendiam, claro. Levo a carteira de identidade. A última concessão. Depois, a liberdade.
Já sei! Vou de carro. Sem parar. Desbravarei matas e pradarias com o meu temível Passat. O meu adeus à engenharia alemã. Irei largando peças e acessórios pelo caminho. Me despedindo, simbolicamente, de camadas de civilização. Chegarei à selva montado num esqueleto de máquina, que enferrujará lentamente na umidade, enquanto eu reaprendo a andar sobre os dois pés nus. O homem, que sobreviveu ao dinossauro, certamente sobreviverá ao Volkswagen.
Agora me dei conta de que vão ter espinhos no chão e coisa pior. Melhor levar um estoque de sandálias para os primeiros anos. E, quem sabe, um bom impermeável. Outra coisa: vou precisar de dinheiro para a comida, gasolina e pneus no caminho. E minha licença de motorista. E, por via das duvidas, carteira do Touring.
Então, vamos ver. Livros, fósforos, licença, Touring, sandálias, dinheiro... e só. Nada mais. Queime-se resto. Vivi milhares de anos sem máquinas e roupas feitas, posso fazer o mesmo outra vez. Me bastam os dentes, o dedão opositor e a imaginação. Vou precisar do relógio, claro. E de uma bússola pra me orientar na selva até aprender a ler a direção das estrelas e cheirar o vento. Depois de cultura só me bastará o olfato.
Uma machadinha, um facão, uma lanterna e um estoque de pilhas até que eu aprenda a enxergar no escuro. Pregos e martelos para construir um abrigo. Um canivete suíço. E nada mais. Livre. Só comerei o que caçar e pescar com as próprias mãos. Beberei a água pura das vertentes. Cozinharei a carne e o peixe em espetos de pau-brasil. Vou precisar de sal. Umas latinhas de ervilha, um patezinho, e, muito importante: um abridor de latas. Puxa, e cerveja. E nada mais.
Um homem sozinho com sua fibra e seu poder criador. Só voltarei a civilização se precisar ir ao dentista. Outra coisa, rede de mosquitos. E bandaid. Contarei os dias pela passagem do sol e os meses pelas fases da lua. Aparelho de barbear, lâminas, loção. Me banharei na chuva. Sabonete, tesourinha para unhas. Aspirina. E pomada contra assadura.
Meu Deus, será que tem muita cobra?
Livre. Com uma televisãozinha portátil para não perder o futebol.
(Luis Fernando Veríssimo. “Livre”. In: Manuel da Costa Pinto (Org.). Crônica brasileira contemporânea. São Paulo: Moderna, 2008.)
Considere este trecho da crônica: “O homem, que sobreviveu ao dinossauro, certamente sobreviverá ao Volkswagen.”
Nesse trecho, a oração adjetiva permite afirmar que:
I. Nem todo homem sobreviveu ao dinossauro.
II. Alguns homens sobreviveram ao dinossauro.
III. O homem sobreviveu ao dinossauro.
Está(ão) correta(s) a(s) afirmativa(s)