Leia o texto abaixo para responder à questão.
Ninguém come dinheiro
Quando falo de humanidade não estou falando só do Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos baleia, tiramos barbatana de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que a gente achou que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir cem roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade - que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições -, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombo/as e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos á margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo que não Interessa, o que sobra, a sub-humanidade - alguns de nós fazemos parte dela.
É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra tirar a teta da nossa boca e dizer: "Respirem agora, quero ver". Isso denuncia o artificio do tipo de vida que nós criamos, porque chega uma hora que você precisa de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica, nuclear ou de um gerador de energia qualquer. E o gerador também pode apagar, independentemente do nosso decreto, da nossa disposição. Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal de humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra.
E, se nós não estamos com nada, deveríamos ter contato com a experiência de estar vivos para além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar. A ideia da economia, por exemplo, essa coisa invisível, a não ser por aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, cem a economia deles. Ninguém come dinheiro. Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do conselho dos anciões do povo Lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e poucos anos, chamado Wakya Un Manee, também conhecido como Vemon Foster. (Vernon, que é um típico nome americano, pois quando os colonos chegaram na América, além de proibirem as línguas nativas, mudavam os nomes das pessoas.) Pois, repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia: "Quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro".
Quem sabe a própria ideia de humanidade, essa totalidade que nós aprendemos a chamar assim, venha a se dissolver com esses eventos que estamos experimentando. Se Isso acontecer, como é que os caras que concentram a grana do mundo - que são poucos - vão ficar? Quem sabe a gente consiga tirar o chão debaixo dos pés deles. Porque eles precisam de uma humanidade, nem que seja Ilusória, para aterrorizarem toda manhã com a ameaça de que a bolsa vai cair, de que o mercado está nervoso, de que o dólar vai subir. Quando tudo Isso não tiver sentido nenhum - o dólar que se exploda, o mercado que se coma! - , aí não vai ter mais lugar para toda essa concentração de poder. Porque a concentração, de qualquer coisa, só pode existir num determinado ambiente.
Até a poluição, se e/a se espalhar, sem contenção, o que vai acontecer? O ar vai passar por um processo de limpeza. O ar das cidades não ficou mais limpo quando diminuímos o ritmo? Acredito que essa ilusão de uma casta de humanoides que detém o segredo do santo graal, que se entope de riqueza enquanto aterroriza o resto do mundo, pode acabar implodindo. Talvez a pista mais recente sobre isso seja aquela história dos bilíonários que estão construindo uma plataforma fora da Terra para irem viver, sei lá, em Marte. A gente deveria dizer: "Vão logo, esqueçam a gente aqui!". Deveríamos dar um passe livre para eles, para os donos da Tesia, da Amazon. Podem deixar o endereço que depois a gente manda suprimentos.[...]
(Fragmento de: KRENAK. Ailton. A vida não é útil. São Pauto: Companhia das Letras, 2020)
Considere o trecho a seguir.
Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. (3º parágrafo)
Está mantido o sentido original do trecho acima em: