Questão
2023
VUNESP
Prefeitura Municipal de Araçatuba (SP)
Professor de Ensino Básico I (Pref Araçatuba/SP)
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Leia o conto a seguir para responder à questão.

O menino que escrevia versos

– Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico perguntou:

– Há antecedentes na família?

– Desculpe, doutor?

O médico explicou em pormenores. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

– Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol!

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de- -mel. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol.

A oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejar, a autoria do feito.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega- -refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. Que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem fica em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu que ele fosse examinado.

– O médico que faça revisão geral, parte mecânica e elétrica. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões, lhe espreitassem o nível do óleo. O que urgia era terminar com aquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo e aviava a receita. Com enfado, dirigiu-se ao menino:

– Dói-te alguma coisa?

– Dói-me a vida, doutor.

A resposta o surpreendeu.

– E o que fazes quando te assaltam essas dores?

– O que melhor sei fazer, excelência, sonhar.

Serafina desferiu um tapa na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, por quê? Perto o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. O menino exemplificaria os sonhos, mas o doutor interrompeu-o dizendo que não tinha tempo e que ali não era uma clínica psiquiátrica.

A mãe, desesperada, pediu que o doutor olhasse o caderninho dos versos, a ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e propôs que voltasse na próxima semana.

Na semana seguinte, o médico, sisudo, perguntou ao menino se ele havia escrito mais versos.

– Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida – disse, apontando um novo caderninho.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente. Ele assumiria as despesas, o menino ficaria em sua clínica para o tratamento.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

–Não pare, meu filho. Continue lendo...

(Mia Couto, O menino que escrevia versos. Adaptado)

De acordo com o texto, a escola onde o menino estudava era vista com reservas pelo pai porque este
A
achava que ali havia estudos a mais e más companhias que causaram a grave doença do filho.
B
entendia que uma escola pública deveria estimular as relações interpessoais dos jovens.
C
creditava ao ensino o desenvolvimento intelectual do filho, que estava adiantado para a sua idade.
D
queria que o filho se equilibrasse intelectualmente e se desenvolvesse, o que a escola não permitia.
E
condenava os contágios perigosos do filho, que haviam lhe rendido séria doença contagiosa.