Leia atentamente o texto seguinte.
Religiosamente, pela manhã, ele dava milho na mão para a galinha cega.
As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa.
E ele sorria.
Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água.
A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar.
Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do poço.
Aquela água era como uma bênção para ele.
Como água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais.
Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura.
Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela.
De tardinha dava-lhe outra vez milho e água e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer.
A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas.
E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber.
Ele notou essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz.
Tinha delidas lembranças da claridade sumida.
No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.
Ainda tinha liberdade — o pouco de liberdade necessário à sua cegueira.
E milho.
Não compreendia nem procurava compreender aquilo.
Tinham soprado a lâmpada e acabou-se.
Quem tinha soprado não era da conta dela.
Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas.
E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu cocócó malicioso.
O ingrato.
João Alphonsus – Galinha Cega. Em MORICONI, Italo, Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Objetiva, 2000.
Em relação ao trecho “ Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele.” , assinale a alternativa que contém a resposta correta.