AS FORMIGAS
Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram com ele.
Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela tinha escapulido
- o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo.
Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho das cobertas, com preguiça de se levantar, virado para o outro canto, observando as formigas descendo em fila na parede.
Tinha um rachado ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas.
Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor, olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo escuro de chuva.
A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar uma porção de coisas, e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam baixinho, para os outros não escutarem.)
Mas às vezes não lembrava nada para conversarem, e ficava chato, ele acabava dormindo - formiga tinha hora que era feito gente mesmo.
O bom é que ninguém precisava gritar, nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo.
E também poder ficar olhando assim, sem falar nada, só olhando, sem precisar falar.
Gente, se tinha outra perto, logo uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a janela, cagou na tigela, mexeu, mexeu, quem falar primeiro, come a bosta dela:
logo uma falava ou ficava fazendo hum hum e ria - ninguém aguentava. Ficar assim olhando, tão bom que nem sabia direito se estava acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha. Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível.
- Pra quê que o senhor fez isso? Pra quê que o senhor fez assim com minhas formigas? O pai não entendia, e o menino chorando, chorando.
Então o pai deu no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde brincar. De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na parede.
Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta, e cobria a cabeça com o cobertor.
VILELA, Luiz. Tarde da noite. São Paulo: Ática, 1988. p. 128-9.
No trecho:
“Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor, olhando as formigas e conversando com elas,...”
A palavra destacada neste fragmento refere-se a: