Eles não usam black-tie
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TIÃO – Tem uma nota sobre a greve na primeira página!...
OTÁVIO – Se até as oito horas da noite não derem o aumento, greve geral na metalúrgica!
TIÃO – Ninguém tem peito, pai!
OTÁVIO – Como não tem peito? Tá esquecido do ano passado?
TIÃO – Eu não estava lá.
OTÁVIO – Mas eu estava! Deram o aumento ou não deram?
TIÃO – Deram parte do aumento, parte! E mesmo assim porque todas as categorias aderiram! Mas aguentar o tranco sozinho, ninguém.
OTÁVIO – Espera só a assembleia de hoje e vai ver se tem peito ou não! Eu tinha avisado, hein! O ano passado entramos em acordo com o patrão e foi o que se viu. Agora, aprenderam.
TIÃO – E por que entraram em acordo?
OTÁVIO – Porque parte da comissão amoleceu...
TIÃO – Tá vendo, t’aí! Se, em greve de conjunto, metade da turma amoleceu...
OTÁVIO – Metade da turma não, senhor! Metade da comissão.
TIÃO – E então?
OTÁVIO – E então, o quê? Eram pelegos! A turma topava, mas tinha meia dúzia deles que eram pelegos. A turma topava, os pelegos deram pra trás.
TIÃO – Não, pai. Pro senhor, quem não pensa como o senhor é pelego...
OTÁVIO – Nada disso! Eram pelegos no duro. T’aí a prova: tá tudo bem-arrumado na fábrica. Tudo chefe e fiscal. O que é isso? Peleguismo, traidores da classe operárias...
TIÃO – Então metade da turma lá da fábrica é pelego, porque tá tudo com medo da greve!
OTÁVIO (furioso) – Não diz besteira, seu idiota! A turma que t’aí é a mesma turma que fez greve o ano passado e que aguentou tropa de choque em 51...
TIÃO – E por isso mesmo tão cansados e não querem sabê de arriscá o emprego...
OTÁVIO – Tu tá discutindo como um safado!... Pois fica sabendo que lá tem operário e não menino-família pra medrá.
ROMANA (entrando) – Não grita tanto homem! Só vive discutindo política! (Pega mais sanduíches e sai.)
OTÁVIO (baixando a voz) – Tu vai me dizê com o resultado da assembleia de hoje! (Pausa)
TIÃO – Os pelegos que furaram a greve o ano passado tão bem de vida, é?
OTÁVIO – Depende do que tu chama de bem de vida. Pra mim eles estão na merda, merda moral que é pior! Se venderam, né!
TIÃO – É! (pausa.) Eu queria casá daqui a um mês, pai!
OTÁVIO – Bom!
TIÃO – O senhor gosta de Maria, não é, pai?
OTÁVIO – Pode ser uma boa companheira!
TIÃO – Ela é diplomada, sabia?
OTÁVIO – Tua mãe me disse... Que é que tem isso? Diploma não vale nada. Esse governo que t’aí é tudo diplomado! Analfabeta, mas honesta, mal-educada, falando errado, mas com... com aquele (procurando), aquele treco que só a gente tem aqui dentro (bate no peito). Essa é a mulhé que eu queria pra meu filho...
TIÃO – Além de tudo, ela tem esse... treco, pai!
OTÁVIO – Sei não. Tu parece que não tem...
TIÃO – Por quê?
OTÁVIO – Tu tem medo...
TIÃO – De quê?
OTÁVIO – Uma porção de medos... Um é de perder o emprego.
TIÃO – Não é medo...
OTÁVIO – Então por que tu foi vê se arrumava emprego no escritório da fábrica?
TIÃO – Ganha mais.
OTÁVIO – Tu também procurou na farmácia do Dalmo... lá ganha menos...
TIÃO – Foi só pra ter uma ideia...
OTÁVIO – Sinceramente?
TIÃO – Não tem nada pra escondê!...
OTÁVIO – Tu acha que aguenta as lutas da fábrica sem medo?...
TIÃO – Se os outros aguenta.
OTÁVIO – Se não aguentasse?
TIÃO – O senhor acha que a turma vai topá a greve?
OTÁVIO – A assembleia é hoje à noite. Bráulio tá lá, ele vem com as novidade... t’aí um que tem esse tal treco... Emprestou dinheiro pra nós... É capaz de vender as calças para prestá um favor...
TIÃO – Tem poucos assim!
OTÁVIO – Engano.
TIÃO – Ninguém vale nada, pai!
OTÁVIO – Como você tem medo!
TIÃO – Mas medo de que, bolas!
OTÁVIO (imperturbável) – De ser pobre... da vida da gente!
TIÃO (com um gesto de quem afasta os pensamentos) – Ah! Tou é nervoso... tou apaixonado, pai... Não liga, não!
Gianfrancesco Guarnieri. Eles não usam black-tie. São Paulo: Civilização Brasileira, 1995.
Das afirmações seguintes:
I. Através de suas falas, é possível perceber que Tião estava mais preocupado com o interesse coletivo e Otávio com o interesse pessoal.
II. Otávio e Tião tinham opiniões divergentes quanto ao assunto discutido entre eles.
III. No contexto geral do texto é possível afirmar que o termo “TRECO”, usado por Otávio, se refere a dignidade, honestidade, coragem, ao sentimento de humanidade que uma pessoa possui.