Questão
2023
AVANÇASP
Prefeitura Municipal de São Lourenço da Serra (SP)
Diretor de Unidade Escolar (Pref São Lourenço da Serra/SP)
2023
AVANÇASP
Prefeitura Municipal de São Lourenço da Serra (SP)
Procurador Jurídico (Pref São Lourenço da Serra/SP)
2023
AVANÇASP
Prefeitura Municipal de São Lourenço da Serra (SP)
Professor de Educação Básica II - Professor Coordenador (Pref São Lourenço da Serra/SP)
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Defenestração 

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria. 

— Os hermeneutas estão chegando! 

— lh, agora é que ninguém vai entender mais nada... 

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. 

— Alô... 

— O que é que você quer dizer com isso? 

Traquinagem devia ser uma peça mecânica. 

— Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto. 

Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água. Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres: 

— Defenestras? 

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam. Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração...” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em: 

— Aquele é um defenestrado. 

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela! Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração? Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. 

— Les defenestrations. Devem ser proibidas. 

— Sim, monsieur le Ministre. 

— São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios. 

— Sim, monsieur le Ministre. 

— Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos. Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes. 

— É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...

 — Hmm. o impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar — diz o analista, afastando-se da janela. 

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração.
Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada. 

Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no 17º andar. 

— Querida... 

— Mmmm? 

— Há uma coisa que eu preciso lhe dizer... 

— Fala, amor. 

— Sou um defenestrador. 

E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama: 

— Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo! 

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia: 

— Fui defenestrado... 

Alguém comenta: 

— Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela! 

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti. 

Luiz Fernando Veríssimo

Ao se referir aos hermeneutas, o personagem diz que “onde eles chegassem, tudo se complicaria”. Isso porque a palavra "hermeneuta" evoca:
A
o significado da palavra hermenêutica, que se refere à interpretação de palavras e textos.
B
características de pessoas complicadas.
C
pessoas andarilhas que falam coisas sem sentido.
D
grupos relacionados ao ocultismo.
E
problemas relacionados ao universo.