Caso pluvioso (Carlos Drummond de Andrade. Viola de Bolso, 1955)
1 A chuva me irritava. Até que um dia
2 descobri que Maria é que chovia.
3 A chuva era Maria. E cada pingo
4 de Maria ensopava o meu domingo.
5 E meus ossos molhando, me deixava
6 como terra que a chuva lavra e lava.
7 Eu era todo barro, sem verdura...
8 Maria, chuvosíssima criatura!
9 Ela chovia em mim, em cada gesto,
10 pensamento, desejo, sono, e o resto.
11 Era chuva fininha e chuva grossa,
12 matinal e noturna, ativa... Nossa!
13 Não me chovas, Maria, mais que o justo
14 chuvisco de um momento, apenas susto.
15 Não me inundes de teu líquido plasma,
16 não sejas tão aquático fantasma!
17 Eu lhe dizia em vão - pois que Maria
18 quanto mais eu rogava, mais chovia.
19 E chuveirando atroz em meu caminho,
20 o deixava banhado em triste vinho,
21 que não aquece, pois água de chuva
22 mosto é de cinza, não de boa uva.
23 Chuvadeira Maria, chuvadonha,
24 chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
25 Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
26 poças d'água gelada ia tecendo.
27 Choveu tanto Maria em minha casa
28 que a correnteza forte criou asa
29 e um rio se formou, ou mar, não sei,
30 sei apenas que nele me afundei.
31 E quanto mais as ondas me levavam,
32 as fontes de Maria mais chuvavam,
33 de sorte que com pouco, e sem recurso,
34 as coisas se lançaram no seu curso,
35 e eis o mundo molhado e sovertido
36 sob aquele sinistro e atro chuvido.
37 Os seres mais estranhos se juntando
38 na mesma aquosa pasta iam clamando
39 contra essa chuva estúpida e mortal
40 catarata (jamais houve outra igual).
41 Anti-petendam cânticos se ouviram.
42 Que nada! As cordas d'água mais deliram,
43 e Maria, torneira desatada,
44 mais se dilata em sua chuvarada.
45 Os navios soçobram. Continentes
46 já submergem com todos os viventes,
47 e Maria chovendo. Eis que a essa altura,
48 delida e fluida a humana enfibratura,
49 e a terra não sofrendo tal chuvência,
50 comoveu-se a Divina Providência,
51 e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
52 Não chove mais, Maria! - e ela parou
Chuvadeira Maria, chuvadonha, chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha! (linhas 23 e 24)
No segmento acima, as palavras sublinhadas são cognatas, ou seja, originam-se a partir de uma mesma raiz. A palavra que apresenta um processo de formação distinto dos demais é