CARTA DE UM EDITOR PORTUGUÊS
(Rachel de Queiroz)
" ... A necessidade que se impõe para uma edição portuguesa de obras de autores brasileiros, de certas e inofensivas alterações, como sejam a deslocação de pronomes (em certos casos), harmonização da ortografia com as determinações do Acordo Luso-brasileiro - que em Portugal é cumprido - e uma ou outra substituição de termos pouco usados em Portugal ou que tenham sentido diferente daquele que o autor lhes quis dar."
O trecho que acima transcrevo são palavras de uma carta em que ilustre editor português me fez a gentileza de solicitar permissão para publicar livros meus; parece que só mediante tais condições é que autores brasileiros podem ser editados no Portugal europeu e ultramarino.
Pois a resposta que tenho a dar ao prezado editor português é a mesma que já lhe deu, tempos atrás, meu editor e meu amigo José Olympio: - Muito obrigada, mas assim, não.
A primeira interrogação que nos ocorre diante de tal projeto de "alterações", é esta: será verdade, realmente, que o público português não entende a língua portuguesa do Brasil, tal como a falamos?
Não haverá, na ideia dessas alterações, mais uma questão de prestígio que de necessidade? Convivo com grande número de portugueses entre amigos e parentes, e nunca nos desentendemos por incompreensão de palavras ou de modismos. E a língua falada, com as diferenças de sotaque e pronúncia, é muito mais difícil de entender que a língua escrita.
O Brasil é grande, todos o sabemos. E os sessenta milhões de brasileiros falamos e escrevemos de inúmeras maneiras a língua que nos deu Portugal. Compare-se um texto de Simões Lopes a outro de José Uns do Rego e notar-se-ão as infinitas diferenças que separam os dois, no vocabulário e na sintaxe. Mas ousaria um editor do Norte ou do Sul propor alterações nas páginas do paraibano para que o entendessem os gaúchos, ou nas do gaúcho para que o entendessem os paraibanos?
Meu caro amigo português, talvez essa ideia o irrite, mas a verdade é que, hoje, a sua língua é um patrimônio tanto nosso quanto seu. Sei que o trabalho de. formá-la, assim bela e nobre, foi dos portugueses. Mas, também, já há quatrocentos anos que a amamos e a apuramos ao nosso modo. Nem tinha ela mais idade quando a usou Camões. Vocês no-la deram, como nos deram tudo o mais com que se fez o Brasil. E hoje ela faz parte essencial da nossa vida de povo, tal como faz parte da sua. Por nós tem sido enriquecida e fecundada. Se em Portugal acham que a maltratamos e a desfiguramos, é porque cada um tem sua maneira de amar e, nessas questões, o que é ortodoxia para uns é heresia espantosa para os outros.
Não, não me venha dizer que em Portugal não entendem o que escrevemos. E, fosse esse o caso, bastaria a aposição de um glossário no fim de cada livro para resolver as dúvidas. Mas o que nos propõe é outra coisa: é correção, é conserto de pronomes, é a revisão do caçanje brasileiro que fere o bom ouvido peninsular.
Acontece entretanto, meu caro amigo, que esse caçanje, que esses pronomes mal postos, que essa língua que lhes revolta o ouvido, é a nossa língua , é o nosso modo normal de expressão, é - ouso dizer - a nossa língua literária e artística. Já não temos outra e, voltar ao modelo inflexível da fala de Portugal, seria para nós, a esta altura, uma contrafação impossível e ridícula.
Digo mais: não acredito de modo nenhum que esse tal sistema de nos corrigir primeiro os livros para os entregar depois ao público português, represente um serviço à aproximação das duas culturas. Acho, . ao contrário, que tal prática serve apenas para cultivar diferenças e marcar distâncias. Pode acariciar o vosso orgulho, mas fere fundo as nossas suscetibilidades, sem falar no quanto afeta a integridade e harmonia da nossa obra literária. Pois o que Portugal fica conhecendo, assim, não é literatura brasileira na sua forma espontânea e genuína, mas obra mutilada e remendada, necessariamente grotesca. Que sobrará de um texto meu, por exemplo, depois de ter os seus pronomes recolocados à portuguesa, depois de me trocarem as palavras próprias por outras "de mais fácil compreensão" - mas alheias?
Talvez os escritos daqueles colegas muito mais importantes que me citou na sua carta, e que se submeteram às correções, resistissem galhardamente â cirurgia. Eles são tão grandes, tão ricos que, por mais que lhes tirem, sempre fica riqueza suficiente para encantar a qualquer um. Mas, eu, coitadinha, que será feito de mim se me cortam e me deturpam a pouca pobreza? Que restará? Não sou escritor de imaginação que componha bonitos enredos, nem traço retrato de uma época, nem sou capaz de profundezas de psicologia, nem criei nada de novo ou importante na ficção nacional. A pequena graça que me podem achar é neste jeito descansado de mulher do campo, que conta histórias do que conhece e do que ama. E como pode, de repente, essa sertaneja de fala cantada, desandar a trocar língua em puro alfacinha?
[ ... ]
Portugal cometeu um erro trágico quando, â volta de D. João VI ao reino, não quis reconhecer ao Brasil o seu estado de adulto e tentou devolvê-lo à menoridade. Por culpa desse erro, rompeu-se a união luso-brasileira. De dois países irmãos e unidos que poderíamos ser, passamos a dois estranhos. Atravessada a crise da Independência, restou-nos, o que não é pouco, . o patrimônio comum da cultura e da língua. Mas é preciso que haja respeito e consideração recíproco, para que tal patrimônio se mantenha ind1v1so e perfeito. Que haja igualdade de tratamento, de parte a parte. Nunca a um de nós ocorreria "adaptar" ao escrever e ao falar brasileiro, a obra do mais humilde escritor português. Que Portugal faça o mesmo conosco, procure nos entender e nos amar tais como somos, como nos fez o tempo e o gênio português transplantado às terras da América.
Afinal o Brasil não é um filho bastardo de Portugal. É seu filho legitimo. e, mais que isso, é o seu morgado - com todos os direitos e priv1lég1os que estão inerentes à primogenitura.
(QUEIROZ, Rachel de. Um alpendre, uma rede, um açude: 100 escolhidas. São Paulo: Siciliano, 1993 - texto adaptado)
Leia o trecho a seguir.
"Talvez os escritos daqueles colegas muito mais importantes que me citou na sua carta, e que se submeteram às correções, resistissem galhardamente à cirurgia. Eles são tão grandes, tão ricos que, por mais que lhes tirem, sempre fica riqueza suficiente para encantar a qualquer um." (9°§)
Assinale a opção que apresenta corretamente o tipo de relação pragmático-discursiva estabelecida entre os períodos do trecho acima.